Criei esse blog para servir de "diario" do meu doutorado. Colocarei aqui livros que estou lendo, sites, artigos, etc. O espaço esta aberto para discussoes, entao sinta-se livre para dar sua opiniao, sugestao de leitura, entre outras coisas.
sábado, 6 de novembro de 2010
Basic Instinct PosterNesse final de semana assisti à Basic Instinct (1992, Instinto Selvagem) de Paul Verhoeven. O filme é conhecido pelas cenas fortes de sexo e nudez (quem nao se lembra da cruzada de pernas de Sharon Stone ?).

Mas vendo o filme percebi que a musica contribui de uma maneira bem interessante à narraçao. Para mostrar que a musica é importante mesmo em filmes comerciais, ou que ela nao é somente importante em filmes de autor ou em filmes antigos, vou fazer uma pequena analise. Para quem nao viu o filme eu sugiro que va ve-lo e depois leia o texto, pois terei que contar um pouco da historia... e o final do filme.

A musica foi composta por Jerry Goldsmith.

Analise da funçao narrativa da musica em Basic Instinct : nao tenho como intuito analisar a musica em si (melodia, textura, harmonia, humor, etc.). O objetivo principal é a relaçao da musica com o filme. Como ela ajuda a contar a historia e como ela participa dessa experiencia narrativa.

Em teoria musical nos temos um elemento que se chama motivo. Motivo é uma "figura" musical recorrente (notas, pequenos ritmos, etc.) O "tan-tan-tan-tannnnn" da 5 sinfonia de Bethoven é um motivo. Nos escutamos esses celula de tres notas em todo o primeiro movimento por exemplo. O motivo cria unidade, e serve de material de desenvolvimento para o compositor. Para virar "motivo" essas celulas tem que ser percebidas pelo ouvinte, e assim ganhar importancia no contexto onde elas se encontram. é importante destacar que mesmo o auditor nao especializado (que nao tem treinamento musical) é capaz de reconhecer  essas celulas. Seu cérebro é capaz de organiza-las e de dar sentido a essas formas. Isso porque a aprendizagem auditiva se da principalmente pela simples exposiçao repetida a um certo estimulo. Os conhecimentos implicitos guiam a percepçao do auditor (principalmente o nao musico). Isso se chama aprendizagem implicita. Mesmo sem ter o conhecimento verbalizado, o auditor sabe muito bem o que se passa, e é capaz mesmo de prever (ou de se decepcionar com) eventos musicais futuros. Os compositores jogam com isso o tempo todo. é claro, que tudo depende do contexto cultural onde esta inserida a obra e o auditor, e também da "enciclopédia cultural" de cada um.

O conceito de motivo também é utilizado na analise de filme. Ele foi projetado do meio musical para o meio filmico, principalmente na analise de imagem. O motivo tem também como caracteristica sua repetiçao. Se ele se repete, e é "evidente", provavelmente ele é importante. Um motivo recorrente em varias obras cinématograficas (a gente vê isso muito nos filmes de Hitchcock) é a espiral. A espiral tem varios significados : o matematico (a curva que gira em torno de si, se afastando do centro e voltando à ele), os misticos, e outros significados metaforicos.

A espiral "figura" bem a historia de Basic Instinct. O ponto central é a escritora Catherine Tramell (personagem de Sharon Stone) ; ela escreve sobre sua vida real, e pratica na vida real o que escreve (ela supostamente mata seus personagens da mesma maneira que escreve) ; sua perseguidora, a psciquiatra Beth Garner (interpretada por Jeanne Tripplehorn) a segue e a imita ; e por mais que o mistério de quem matou o homem no começo do filme se "revele" quando descobrimos que a perseguidora é a assassina, ainda ficamos na duvida se Catherine realmente nao o matou, ou vai matar o proximo personagem de seu livro (assim como é sugerido que ela faz, e sempre fez). A historia sempre volta à personagem de Stone.

No entanto, nao é certo quem matou o homem no começo do filme. Nos nao vimos o rosto do assassino, so os cabelos loiros e o corpo de mulher. A narraçao entao sugere que a escritora (loira e mulher, e com um historico no minimo suspeito) é a assassina do começo do filme. Mas mesmo com o misterio solucionado (o filme, atravez da policia, conclui que a assassina é a psciquiatra) o filme ainda volta à personagem de Stone, e sugere que ela ainda é um mistério, um perigo, e que provavelmente esta envolvida com o assassinato (e que vai continuar a matar os personagens principais de suas historias).

Essa "espiral" percebida na historia é representada em varias esferas do enunciado narrativo.

Ela é uma imagem :


A escada em espiral pode ser vista à 01:07:20 do filme e vai até 01:07:38 intercalada com alguns planos onde ela nao é explicitamente "figurada".  

E ela é musica :

O tema principal começa desde os segundos iniciais do filme. Logo nos créditos. O tema (o seu contorno mélodico) também é construido em "forma de espiral" : ele começa em uma nota mais aguda (La, no logo no inicio), desce cromaticamente (criando instabilidade) e volta para a mesma nota. O tema se desenvolve, mas o motivo (musical ou o "figural" é o mesmo). O acompanhamento do tema também é uma repetiçao de si mesmo, e um retorno ao seu propio inicio.  

Na primeira sequencia do filme, onde presenciamos o assassinato que da inicio a narraçao, nao conseguimos ver o rosto da mulher. Nao sabemos a identidade da assassina. O tema do inicio continua, e aumenta em instabilidade, volume, etc.  para acompanhar a tensao da açao na tela (a mulher pega a arma e mata o homem). A musica ai, se associa ao assassinato e ao misterio de quem o praticou. 

A musica do filme nao é construida  de leitmotivs (tema associado à algum personagem, sentimento, açao). Essa é uma escolha narrativa classica. Ao escutar um tema musical ja associado à algum elemento do filme (por exemplo um personagem) dentro de um outro contexto, onde o mesmo elemento esteja presente ou nao, esse tema musical reenvia seus significado à sua associaçao original... funciona como uma resposta condicionada. 
Jerry Goldsmith controi um so possivel leitmotiv : o tema cromatico do começo do filme. Esse tema se associa à assassina. Sempre que referecias sao feitas ao assassinato, ou à algumas apariçoes da suspeita numero um (Stone) ele aparece (bem variado, e quase nunca na sua forma original). Mas, a musica em si mesma pode ser considera como um leitmotiv da personagem de Stone. Pois elas estao sempre juntas. Nao existe musica no filme sem a personagem de Stone, ou que nao faça alguma referencia à ela.  


Como vimos, a recorrencia da musica em todo o filme também acontece "em espiral" (ela sempre acompanha a personagem de Stone) :

No começo do filme, quando os detetives vao à casa de Catherine, interroga-la, uma mulher, loira, desce as escadas (nos nao conseguimos ver quem é) e a musica esta presente. Mas assim que é revelado que ela nao é a loira do crime (pois ela nem é tao loira assim) a musica acaba... 

Se Stone nao esta fisicamente presente, ela esta na "cabeça" do detetive.  À 00:36:00 Nick vai ao apartamento de sua psciquiatra Beth Garner. A musica participa dessa sequencia de sexo. A personagem de Sharon Stone nao esta presente... fisicamente. Mas Nick esta pensando nela. No fim da sequencia, Beth pergunta a Nick à quem ele fez amor... ele exita em suas resposta... e ela explica que ele nunca foi assim violento. Esse dialogo reforça ainda mais a ligaçao entre a musica e Catherine.

A musica ainda sugere a personagem de Stone (01:2427) quando alguem (nao sabemos quem) dirige seu carro e tenta atropelar Michael Douglas. Nao sabemos quem esta dirigindo, mas a musica nos da a dica : provavelmente é Catherine (a quem ela sempre acompanha). Assim que é revelado que quem dirigia o carro era Roxy, a namorada de Catherine, a musica para... como que dizendo "ha, nao é ela...te enganei de novo". Dessa maneira, a musica joga com nossas expectativas o tempo todo. Ela cria uma previsibilidade, que é confirmada ou nao.

Quando Douglas atira em sua psciquiatra, logo no fim do filme, a musica também acompanha essa sequencia. Sua associaçao principal é a personagem da escritora, nesse ponto do filme nos nao temos mais duvidas... mas aqui, mesmo apos a "loira" matar o parceito de Douglas, a musica ainda continua... mas quem aparece na tela nao é a Sharon Stone, e sim sua perseguidora, a psciquiatra... a desconfiança de Nick o faz atirar e matar Beth... a musica deixa os espectadores confusos, se ela é propiedade de Stone, o que ela faz ai nessa sequencia... entao, a hipotese é : ela na verdade acompanha a assassina (o tema "principal" esta presente nessa sequencia, mas ele nao é apresentado na sua forma original, e sim em uma forma bem variada). Logo nao temos mais duvidas de quem era a assassina do começo do filme : a "loira" era a perseguidora. A musica termina assim que Douglas atira. Assassina morta, a musica nao tem mais porque existir. 

A musica so volta com os fatos que "confirmam" que a assassina é a psciquiatra (o descobrimento da peruca loira, a arma, os livros e artigos encontrados em seu apartamento). O filme muda totalmente a associaçao feita antes : a musica (que engloba o tema da assassina no começo) que era de Catherie agora pertence à assassina (que nao é a Catherine) fomos enganados o filme todo... sera ?

Minutos depois a musica volta. Estamos na delegacia, sem a presença (fisica ou mental) da assassina ou da suposta assassina. A musica gera um conflito, porque nenhum elemento, antes associado à ela, esta presente. Esse conflito é gerado pois o contexto construido durante o filme (musica sempre com Stone, depois assassina) é violado. 

Na continuaçao do filme, à 01:58:51, Michael Douglas volta ao seu apartamento. Varias pistas (musicais sobretudo) nos sao dadas nesse momento para acabar com esse conflito criado pela musica. 
Primeiramente : qual imagem podemos ver quando Nick entra em seu predio ?

Sim, a espiral novamente... Qual o tema musical que volta ao seu estado original ? sim, o tema do inicio do filme (tema cromatico, na sua forma original) do primeiro assassinato. 

A musica, desde que ela começou, esta jogando com nossas expectativas : apos criar um contexto ela te surpreende. Ela jogou com sua previsibilidade o tempo todo (musica=Catherine). E ao criar esse conflito, essa surpresa (musica=assassina que nao é Catherine), e apresentar o tema principal, ela anuncia algo...

E quem surge à 01:59:18, dentro do apartamento de Nick ?


Sim, Catherine. Mas porque o tema do inicio esta presente no começo ou em algumas partes dessa sequencia ? ela nao é a assassina (que foi morta por Nick), o que se passa ? (essas perguntas sao feitas pelo espectador... um pesquisador que gosto muito, Scott Lipscomb, diz que essas perguntas sao feitas conscientemente ou mesmo inconscientemente). A musica tenta responder à essas questoes (dentre outras mais), mas os dialogos e as imagens nos dizem outra coisa : ela gosta de Nick, e nao quer perde-lo. Mas como ela vai perde-lo sendo que a assassina foi morta ? Quem poderia mato-lo ainda ? a musica tenta "desesperadamente" mostrar que Catherine talvez nao seja o que ela fala que é, e que todas as associaçoes feitas anteriormente nao foram feitas ao azar. Musica e dialogos (e imagens também) nos dizem coisas diferentes nessa sequencia... cada um sustenta um lado da historia (musica=vou te matar ; dialogos=te amo). 

Ja na cenas finais, na cama, sempre em que momentos de tensao ou referencias aos gestos do assassinato no começo do filme, o tema principal é citado pela musica. O tema nessas sequencias é bem exitante... assim como Catherine sobre seu relacionamento com Nick (e talvez sobre mata-lo ou nao ?). O dialogo deixa claro que ela nao vai matar Nick.... mas as açoes de Catherine nos dizem outra coisa. Ela faz as mesmas coisas do começo (espiral ?), passa a mao na cama, procurando algo... ela se debruça sobre Nick (a camera nao nos mostra sua mao, ou o que se passa logo que ela se debruça sobre ele.... ela faz um traveling lateral, para entao nos mostrar que nada aconteceu... a musica fica suspensa nesse ponto).

A mesma coisa acontece minutos depois. Catherine esconde sua mao do lado da cama, enquanto Nick esta de costas. Ela aparenta ter pego algo (a musica monta em dinamica, principalmente o vibrato das cordas... o vibrato, em pscicologia musical, representa um corpo que vibra, e o corpo que vibra esta em alerta, tenso... bilogicamente, algo pronto para atacar). Novamente, ela vai com a mao em direçao à Nick, como um golpe. Mas ela nao tem nada em suas maos. O tema principal reaparece, tocado pela orquestra toda, quase apoteotico (um climax musical... os elementos narrativos do filme querem que ela seja a assassina, mas ela nao é...). Tela preta. Acabou... nao, a musica continua. A imagem dos dois na cama retorna, a camera desce em direçao ao que Catherine supostamente segurava (as imagens anteriores nos motraram que nao era nada). Mas ao alcançar o nivel do chao vemos o picador de gelo. Arma de seus crimes. Esse traveling da camera é acompanhado do tema principal, o tema do assassino. 

Sem mais duvidas a musica volta ao seu "ponto" de origem : o assassino. Que agora, nos é verdadeiramente revelado. Quem matou o homem no começo do filme nao foi Beth, e sim Catherine. A musica a denunciou desde o inicio do filme. Mas por um evento inesperado perto do fim, nos ficamos em duvida. No entanto, a musica nao nos decepciona, e revela a verdadeira face do assassino durante toda a historia (a imagem, direta, exata, so nos revela a verdade no ultimo plano). 

Catherine nao mata Nick, mas a arma esta ali, a intençao estava ali. Os dispositivos narrativos tem sempre um começo e um fim (o filme começa e acaba). A historia nao. Os creditos finais começam, mas a musica, mesmo que exitante, continua. Ela é tao importante para o filme, que mesmo com os créditos finais ela continua "a contar" a historia. O tema ouvido é o tema principal, do assassino. Ela nao sugere o "final feliz" que Nick preve...Nick  nunca esteve no controle das informaçoes, ou das açoes do filme... Catherine, e a musica sim... o tema principal nao para. A musica nao deixa que a historia acabe...

Em Basic Instinct, a musica é um elemento narrativo importante. Ela cria expectativas. E essas expectativas desenvolvidas pelo contexto sonoro sao projetadas à narraçao do filme. A musica pode nos fazer prever eventos, nos decepcionar, ou ainda confirmar nossas expectativas. Contribuindo assim à construçao da historia e ajudando à conta-la.    

Para quem quiser ouvir o tema principal (do assassino), é so clicar aqui

Abraços

CH

2 comentários:

maria neusa guadalupe disse...

Maravilhosa e surpreendente análise...me deu vontade de rever o filme...beijos orgulhosos.

maria neusa guadalupe disse...

Voltei....só depois vi que podia ouvir a música,que é realmente instigante....beijos gratos.

About Me

Minha foto
carlos henrique
Ver meu perfil completo

Seguidores

Total de visualizações de página

Quem esta ai ?

Tecnologia do Blogger.